No início dos períodos de quarentena, houve um aumento de venda de bebidas alcoólicas para consumo em casa. Não é surpreendente, pois o álcool presente em bebidas alcoólicas (e mais especificamente um álcool de dois carbonos, chamado etanol) tem efeito repressor em nossos neurônios, agindo principalmente nos circuitos inibitórios de nosso cérebro, quando ingerido em quantidades menores. A consequência é uma diminuição da inibição e vergonha e aumento relativo de nossa sensação de euforia e felicidade.

Não é inesperado, portanto, que pessoas busquem no álcool a sensação de alegria, mesmo que temporária, ao presenciar as enormes e tristes transformações ocorrendo no mundo atual. Mas sabemos também que a felicidade trazida por bebidas alcoólicas não é inócua. Alcoolismo é um problema de saúde pública, e, num país que produz álcool em altas concentrações a baixo custo na forma de cachaça, a nossa distópica e prorrogada situação pode levar ao aumento preocupante dessa doença.

Dentro de nossos corpos, e principalmente no fígado, o etanol é metabolizado por uma enzima que retira elétrons da molécula, gerando uma nova molécula chamada acetaldeído. O acetaldeído é perfeitamente natural, mas, como muitas outras moléculas naturais, é também bastante tóxico. Causa a sensação de ressaca e pode destruir tecidos, levando aos problemas de saúde associados ao alcoolismo. Mas por que teríamos uma enzima dentro de nós que produz um produto tóxico? Na realidade, o acetaldeído é apenas um intermediário do metabolismo de etanol, que no passo seguinte é metabolizado por outra enzima para gerar ácido acético (o mesmo composto do vinagre). O ácido acético é então convertido em energia nos nossos corpos, ou, se não houver necessidade de energia imediata, é incorporado em moléculas de gordura, e estocado para uso posterior.

O BRASIL É UM EXPOENTE NO USO DE ÁLCOOL COMO ENERGIA RENOVÁVEL PARA AUTOMÓVEIS. ESQUECEMOS FREQUENTEMENTE QUE ESSAS SÃO CONQUISTAS TECNOLÓGICAS NACIONAIS

Apesar de ser uma molécula pequena, o etanol é bastante rico em calorias. É por esse motivo que evoluímos para metabolizar esse composto e aproveitar a sua energia. Porém, não evoluímos para lidar com quantidades grandes de etanol. Nossos corpos foram preparados pela evolução para ocasionalmente metabolizar algumas dessas moléculas, porque de vez em quando todo mundo come alguma coisa podre, contendo álcool e outros produtos de fermentação. Mas a capacidade de lidar com grandes quantidades da molécula é limitada. Por isso podemos facilmente nos sentir embriagados e sofrer lesões de tecidos com a ingestão de bebidas alcoólicas. Isso ocorre de forma particularmente comum em pessoas de origem oriental, que possuem menos atividade das enzimas que transformam acetaldeído em ácido acético.

Humanos começaram a propositadamente produzir produtos alcoólicos fermentados há pelo menos 12 mil anos — foram encontrados frascos dessa época contendo resquícios destes. Fazíamos isso não só por apreciar a sensação de felicidade promovida pelo etanol, mas principalmente por necessidade: permitir o crescimento e fermentação por microrganismos que não nos causam doenças preserva bebidas e alimentos, pois inibe o crescimento de outros microrganismos que causam doenças. De fato, durante grande parte de nossa história documentada, beber água em cidades era arriscado, pois continha microrganismos patológicos espalhados por outros humanos. Dava-se preferência a bebidas fermentados como cervejas e vinhos, até mesmo para crianças.

E não é só nos nossos corpos que a energia química do etanol pode ser bem aproveitada. A mesma energia química do etanol pode ser usada para impulsionar veículos. De fato, o Brasil é um expoente no uso de álcool como energia renovável para automóveis. Lançamos um grande programa nacional para distribuição e uso de etanol combustível, derivado de cana de açúcar. Depois, desenvolvemos o carro com motor flexível, capaz de usar tanto gasolina quanto etanol, além de combinações com proporções variadas desses. Esquecemos frequentemente que essas são conquistas tecnológicas nacionais, porque temos contato com essa realidade diariamente. Mas são conquistas que causam espanto e admiração de visitantes internacionais.

Nosso contato com o etanol só aumentou em 2020, pois agora desenvolvemos o hábito de besuntá-lo em nossas mãos sempre que entramos em contato com outras pessoas, como forma de inativar o novo coronavírus. De fato, o álcool inativa esses vírus de forma tão eficaz quanto lavar as mãos, pois dissolve suas membranas, uma estrutura semelhante à “pelinha” que separa a gema da clara do ovo, presente em seres vivos e também em alguns vírus.

Embora seja eficaz nas mãos, infelizmente, não é possível ingerir quantidades suficientes de etanol para eliminar o vírus dentro de pessoas contaminadas (a Organização Mundial da Saúde, incrivelmente, teve que lançar uma declaração para esclarecer esse ponto). As células humanas também têm membranas, e seriam destruídas pelas mesmas quantidades de álcool, se esse entrasse em contato maciço com células vivas (e não só com o tecido morto da pele que nos recobre). Mas esse não é motivo para deixar de admirar a pequena e notável molécula do etanol, capaz de fornecer energia, dissolver membranas, inativar patógenos, ser precursora da produção de gorduras, preservar alimentos, impulsionar automóveis e, se ingerida em moderação, trazer uma breve sensação de felicidade.

Alicia Kowaltowski, médica formada pela Unicamp – com doutorado em ciências médicas – atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

 Fonte: Nexo.